A condenação de Jair Bolsonaro a 27 anos e três meses de prisão é uma vitória histórica sobre o golpismo. Pela primeira vez, um ex-presidente brasileiro foi responsabilizado por tramar contra a democracia. Mas o resultado não nasceu do nada, ele foi arrancado sob intensa pressão social, nacional e internacional, e sob o eco de uma palavra de ordem que atravessou ruas e redes digitais: sem anistia.
Essa condenação não surpreende, mas marca um ponto de virada. O Brasil viveu quase dois anos sob a sombra da impunidade e do risco de que os crimes do 8 de janeiro fossem normalizados. O STF, que tantas vezes se alinhou aos interesses da classe dominante, foi empurrado a reconhecer a gravidade da conspiração. Não por virtude própria, mas porque a correlação de forças, da mobilização social às pressões externas, tornou impossível varrer o crime para debaixo do tapete.
Os limites do Supremo
A decisão do STF repercutiu mundialmente. The Economist chamou de “histórica”; o New York Times lembrou que, em mais de 130 anos, é a primeira vez que líderes de uma conspiração militar-civil são condenados; e o Guardian alertou que a prisão do capitão não significa o fim do bolsonarismo. Isso porque o movimento segue estruturado em igrejas, quartéis, fazendas, redes digitais e parte significativa da burguesia brasileira.
É fato que o STF não tocou nos financiadores, como empresários, setores do agronegócio, da indústria e das Forças Armadas que alimentaram e patrocinaram o projeto golpista. Esse silêncio escancara a limitação do tribunal enquanto um instrumento de manutenção do Estado de exploração e opressão. Ao mesmo tempo em que condena o golpe, o STF foi responsável por validar mecanismos de pejotização, flexibilização de vínculos no serviço público e outros ataques aos trabalhadores. Portanto, nenhum ministro é herói; todos são agentes políticos.
Do ponto de vista jurídico, a defesa de Bolsonaro tentará todos os recursos possíveis. Haverá embargos, debates sobre a dosimetria da pena, alegações de saúde para prisão domiciliar e até tentativas de recorrer a instâncias internacionais. Não é impossível que, em algum momento, se construa uma tese para aliviar sua barra, como já aconteceu em outros casos quando interessava à classe dominante.
Sem anistia! E sem ilusões!
Por isso, a vigilância popular é crucial. O grito de “sem anistia”, que ecoou desde janeiro de 2023, segue atual. O Senado voltou a colocar em consulta pública o PL 5.064/2023, de Hamilton Mourão, que busca anistiar golpistas. É preciso dizer NÃO e pressionar os parlamentares. Conceder anistia seria repetir o erro de 1979, quando a lei que libertou perseguidos também blindou torturadores da Ditadura Militar e acabou incentivando futuras violações. A justiça é fundamental para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.
Além disso, não devemos cair na ilusão de que a condenação abrirá caminho para um “giro à esquerda” no governo Lula. Ao contrário, a tendência é que setores governistas busquem outras situações, inclusive o risco da anistia através do Congresso Nacional, para justificar o neoliberalismo em curso, do arcabouço fiscal às reformas que atacam servidores e o povo, como a reforma administrativa.
A decisão do STF abre uma fenda, mas não encerra a batalha. A direita e a extrema-direita mantêm base social e eleitoral, e não serão derrotadas apenas nos tribunais. É preciso enfrentar não só o golpismo declarado, mas também as condições sociais e econômicas que o alimentam. Isso significa desmontar o neoliberalismo, engrenagem que une governos de conciliação, setores conservadores e de direita que hoje posa de “democrática”.
Sem desmontar esse projeto, responsável pelo arrocho, pelas reformas contra servidores e pelo sucateamento do serviço público, o campo progressista corre o risco de comemorar vitórias parciais enquanto segue atacada, principalmente no que diz respeito ao salário, carreira, aposentadoria, saúde e educação públicas.
A condenação de Bolsonaro é uma trincheira conquistada, não o fim da batalha. Que ela se converta em combustível para a luta da classe trabalhadora, independente e organizada, capaz de transformar a defesa da democracia em um projeto popular de futuro.
“E daí, lamento. Quer que eu faça o que?”
E falta ainda muito. Falta a responsabilização pelo genocídio da pandemia de Covid-19. São mais de 700 mil mortes que pesam sobre um ex-presidente que debochou da dor coletiva e minimizou cada perda. Enquanto famílias inteiras eram destruídas pelo vírus, Bolsonaro dizia que não era “coveiro”, que “lamentava, mas era o destino de todo mundo”, que o Brasil era um “país de maricas” e que a doença não passava de uma “gripezinha”.
Não é justo que, agora condenado, ele permaneça em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Se durante a pandemia afirmava que o impacto do vírus estava “superdimensionado por questões econômicas”, o mesmo pode ser dito hoje sobre seus problemas de saúde. Nada justifica transformar sua pena em privilégio. Bolsonaro está preso porque cometeu crimes contra o povo brasileiro.
Se depender da tradição da Justiça brasileira, é possível que Bolsonaro cumpra a pena no conforto de sua mansão. Por isso, não podemos ter ilusões. Só a pressão popular pode garantir que ele seja preso como deve ser e pague pelos seus crimes, do golpe à pandemia.
O que vimos até aqui é apenas um primeiro passo. A verdadeira justiça ainda precisa vir: aquela que reconheça a tragédia da pandemia como crime de Estado, que responsabilize Bolsonaro e seus cúmplices por cada vida ceifada, por cada lágrima silenciosa, por cada família mergulhada no luto. Por memória, por verdade e por justiça, que a condenação de hoje seja apenas o início de um grande acerto de contas com a história.