Ministro Luiz Marinho interfere de maneira inédita e reiterada na autonomia técnica dos auditores fiscais do Trabalho no enfrentamento ao trabalho análogo à escravidão.
Veio a público, nos últimos dias, que o Ministro Luiz Marinho anulou os efeitos de uma fiscalização realizada por auditores-fiscais do governo federal, que haviam resgatado cinco trabalhadores em condições análogas à escravidão, na extração de sisal, fibra utilizada na fabricação de cordas e tapetes.
O caso aconteceu em 2023, em Jacobina, na Bahia, e consolida um padrão que vem se repetindo, marcado por interferências políticas que fragilizam o combate às formas contemporâneas de escravidão.
Nesse período, a cúpula do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) fez uso da “avocação” (mecanismo que permite ao ministério chamar para si a competência final sobre um ato administrativo) por três vezes, atendendo a pedidos de empregadores e intervindo em inspeção conduzidas por auditores-fiscais.
O risco de regressão histórica
A avocação autoriza o ministro a rever e anular decisões técnicas tomadas por auditores-fiscais. Embora prevista na legislação, essa prerrogativa é incompatível com a fiscalização baseada na impessoalidade, na autonomia profissional e na proteção da dignidade humana.
A ofensiva recente reabre o debate sobre a definição jurídica de “condições análogas à escravidão”. Desde os anos 2000, o Brasil consolidou o entendimento de que a violação grave de direitos, e não apenas a restrição física, caracteriza a exploração. Ao anular autos de infração e resgates baseados nesse entendimento, o Ministério se aproxima de interpretações mais restritivas, que dificultam a responsabilização de empresas e ampliam o espaço para pressões políticas.
Casos que evidenciam a interferência
Os casos envolvendo empresas como JBS Aves, Santa Colomba Agropecuária e Apaeb ilustram como a avocação tem sido utilizada para reverter fiscalizações que identificaram jornadas exaustivas, condições degradantes e até episódios de violência e cárcere privado.
No caso JBS Aves, por exemplo, autos de infração que haviam responsabilizado a empresa por jornadas de até 16 horas e alimentação inadequada foram suspensos, impedindo a inclusão da companhia na atualização da Lista Suja.
O relatório da operação em Jacobina registrou jornadas exaustivas, alojamentos improvisados em estruturas deterioradas, falta completa de equipamentos de proteção e exposição contínua a riscos físicos. Mesmo assim, o ministro anulou os autos de infração e, ainda, encaminhou à Corregedoria a apuração da conduta dos fiscais, ato inédito desde a criação do sistema de fiscalização moderna.
Esses precedentes colocam em xeque o papel histórico do Ministério do Trabalho e expõem o risco de captura de uma política pública construída com base na autonomia técnica.
A resposta institucional e a disputa no STF
A reação de entidades representativas dos auditores-fiscais, como Anafitra (Associação Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho) e Sinait (Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho), consolidou-se em uma frente jurídica que chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 1267. A ação questiona o artigo 638 da CLT, base legal utilizada para permitir a ingerência política sobre o trabalho técnico da fiscalização. A ação aponta que a avocação viola princípios constitucionais básicos da administração pública e compromete obrigações internacionais assumidas pelo Brasil, como a Convenção 81 da OIT, que determina a independência funcional da inspeção do trabalho.
A preocupação também é compartilhada por outros órgãos, como a Procuradoria-Geral da República, o Ministério Público do Trabalho e entidades de direitos humanos, que alertam para o risco de desmonte da política de combate ao trabalho escravo.
A CSP-Conlutas, central sindical da qual o Sindsef-SP é filiado, pede adesão à ADPF, integrando-se de forma ativa à resistência contra a interferência do ministro Luiz Marinho. Na semana passada, a Central protocolou pedido para participar como amicus curiae na ADPF 1267. Para a entidade, ao enfraquecer a responsabilização de empresas, o governo compromete décadas de construção dessa política pública.
Atnágoras Lopes, da Secretaria Executiva Nacional da CSP-Conlutas, reforça que, diante dos mais de 2 mil trabalhadores resgatados apenas em 2024 e dos 65 mil resgatados nos últimos 30 anos, é essencial defender a autonomia da fiscalização e a aplicação dos critérios previstos no artigo 149 do Código Penal para caracterizar a escravidão contemporânea.
Servidores administrativos do MTE
Esse debate não está descolado da luta por valorização dos servidores administrativos do MTE, fundamentais para o suporte técnico, logístico e administrativo que sustenta a fiscalização.
Mesmo sem quadro de carreira, sem reposição de pessoal e com remuneração defasada, esses servidores formam a base que garante a organização de operações, análise de processos, gestão de sistemas, tramitação de autos e funcionamento cotidiano das superintendências.
A luta dos administrativos por valorização e por um plano de carreira não é uma reivindicação corporativa isolada: é condição necessária para preservar a capacidade do Estado de combater violações trabalhistas e garantir que decisões técnicas prevaleçam sobre interesses circunstanciais.
Um órgão forte exige autonomia e valorização
Ao anular autos de infração e interferir diretamente em processos que envolvem violações graves, o Ministério do Trabalho compromete a credibilidade de suas próprias estruturas. A fiscalização perde força quando seus profissionais têm sua autonomia desconsiderada e quando a base administrativa permanece precarizada.
Para o Sindsef-SP, não existe fiscalização forte sem servidores valorizados e autonomia preservada. O fortalecimento do MTE, com carreira própria para os administrativos, recomposição de pessoal, condições de trabalho adequadas e respeito às equipes técnicas, é o caminho para impedir retrocessos e garantir que a política de combate ao trabalho escravo continue sendo referência internacional.
Com informações da CSP-Conlutas; Repórter Brasil.org.br
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil





