A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 66/2023, que altera as regras para o pagamento de precatórios, segue avançando no Congresso Nacional. Após ser aprovada em segundo turno na Câmara dos Deputados, na terça-feira (15), com alterações no texto original do Senado, a PEC voltou à Casa de origem e foi aprovada na quarta-feira (16). Com 63 votos favoráveis e apenas quatro contrários, o texto segue agora para o segundo turno no plenário, etapa final antes de sua promulgação.
A medida prevê mudanças substanciais. Entre elas, a exclusão dos precatórios federais e das requisições de pequeno valor (RPVs) do limite de despesas primárias do Executivo a partir de 2026 — uma mudança que ajuda o governo a cumprir a meta fiscal estipulada em R$ 34 bilhões para o ano, diante de um total de precatórios estimado em R$ 70 bilhões. A partir de 2027, a proposta institui uma regra de transição para reinclusão dos precatórios nas metas fiscais, com a entrada gradual de 10% ao ano, até atingir a totalidade em 2036.
No caso de estados e municípios, a PEC impõe tetos ao pagamento dessas dívidas, vinculando-os a faixas da Receita Corrente Líquida (RCL), que variam entre 1% e 5%. Essa vinculação é progressiva: a cada dez anos, o percentual poderá ser elevado em 0,5 ponto percentual, caso ainda haja estoque de precatórios em aberto. Originalmente limitada aos municípios, a proposta foi ampliada no parecer do relator Baleia Rossi (MDB-SP) para incluir também os estados e a União, aumentando o alcance das restrições e seus possíveis efeitos sobre a execução de decisões judiciais em todo o país. Para advogados e entidades da advocacia, trata-se de uma autorização para o calote institucionalizado.
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em nota técnica assinada pelas 27 seccionais, apontou a inconstitucionalidade da proposta. A entidade alerta para a violação à coisa julgada, à isonomia entre os credores e ao princípio da separação dos poderes, além de classificar a PEC como tentativa de “constitucionalizar, mais uma vez, o calote nos precatórios”.
A OAB relembra que dispositivos semelhantes nas Emendas Constitucionais 62/2009, 113/2021 e 114/2021 já foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento das ADIs 4357, 4425, 7047 e 7064, que condenaram o parcelamento excessivo e a perpetuação dos precatórios como forma de “calote disfarçado”, violando o direito de propriedade e a efetividade das decisões judiciais.
A entidade também critica o regime de assimetrias criado pela PEC, que vincula o pagamento ao desempenho fiscal de cada ente federativo. Para a OAB, isso introduz insegurança jurídica e compromete a previsibilidade dos pagamentos, criando um tratamento desigual entre credores de entes mais solventes e os de municípios com menor arrecadação, o que afronta o princípio da isonomia entre jurisdicionados.
“Para além disso, ao admitir variações significativas no tempo e na forma de pagamento, de acordo com a situação fiscal de cada município, a proposta introduz um regime assimétrico, que fragiliza a segurança jurídica dos credores, estimulando a inadimplência pelos entes federativos, e permite discricionariedade incompatível com a rigidez imposta pelo texto constitucional”, afirma a OAB.
Marco Antonio Innocenti, presidente da Comissão de Estudos de Precatórios do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), afirmou que “o estado nunca mais vai ser obrigado a quitar toda a dívida. Nunca mais essas dívidas serão pagas”. Para ele, a proposta representa “o maior assalto aos credores de precatórios da história” e “a institucionalização do calote”. O fim do prazo para quitação do estoque, previsto na PEC, perpetua o não pagamento e desobriga os entes de equacionar suas dívidas.
Outras críticas recaem sobre a nova regra de correção dos precatórios, que passa a ser feita pelo IPCA acrescido de juros simples de 2% ao ano, substituindo a taxa Selic. Se a soma desses indicadores ultrapassar a Selic, esta será aplicada. Para Innocenti, a mudança é “confiscatória” e “inconstitucional”, pois deteriora o valor dos créditos com o tempo, além de contrariar o princípio da isonomia — já que os entes públicos continuarão cobrando a Selic dos cidadãos, mas pagarão menos aos seus credores.
Já o advogado Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da USP, embora não veja inconstitucionalidade na PEC, afirma que a medida representa uma “pedalada”. Para ele, “o calote é ruim”, e a criação de tetos ao pagamento levará estados e municípios a deixarem de quitar suas dívidas judiciais.
O que muda na prática com a PEC dos Precatórios
Aprovada sob o argumento de “reorganizar o fluxo de pagamentos”, a PEC traz diversas mudanças que afetam o cronograma e a previsibilidade no pagamento dos precatórios. Confira os principais pontos:
- Novo prazo de inclusão no orçamento: a data-limite para que precatórios sejam inseridos na proposta orçamentária passa de 2 de abril para 1º de fevereiro. Caso esse prazo seja perdido, o pagamento ficará para o segundo exercício seguinte — sem incidência de juros no primeiro ano.
- Criação de linha de crédito: será possível que a União autorize bancos públicos a oferecer crédito para entes com grande volume de dívidas, como forma de antecipar os valores a serem pagos aos credores.
- Faixas de endividamento: estados e municípios poderão pagar os precatórios com base em percentuais da Receita Corrente Líquida (RCL). Os índices vão de 1% a 5%, com crescimento progressivo a cada década se houver estoque de dívidas.
- Sanções a devedores: entes que não cumprirem as novas regras poderão sofrer sequestro de valores pelos Tribunais de Justiça, ficar sem transferências voluntárias da União e ter seus gestores responsabilizados por improbidade.
- Desconto nos acordos: a proposta permite que entes públicos façam acordos diretos com credores para pagamento com deságio (desconto), retirando o valor do estoque de dívida.
- Fim da regra de 1/12 da RCL: estados e municípios não precisarão mais reservar mensalmente 1/12 de sua receita líquida para pagamento de precatórios, o que pode comprometer ainda mais a previsibilidade para os credores.
- Ampliação do uso livre de receitas: os municípios poderão usar até 50% de suas receitas vinculadas de forma livre até 2026 (antes era 30%). Após esse prazo, o índice retorna a 30%, com restrições em áreas como saúde, educação e clima.
- Mudanças climáticas como nova prioridade fiscal: a PEC autoriza, entre 2025 e 2030, que o governo use até 25% do superávit dos fundos públicos para projetos de mitigação das mudanças climáticas e transição ecológica — uma medida polêmica por abrir brechas para desvio da finalidade original dos fundos.
A proposta ainda deve ser votada em segundo turno no Senado. Caso aprovada sem novas modificações, a PEC será promulgada, promovendo uma profunda reestruturação do regime de precatórios no Brasil — com potencial de criar uma bola de neve no endividamento público, segundo especialistas, e de tornar permanente o adiamento de dívidas judiciais do Estado com os trabalhadores.
Com informações do Senado Federal, Consultor Jurídico e OAB.